Alice

“A meio caminhar de nossa vida

fui me encontrar em uma selva escura:

estava a reta minha via perdida.”

Dante Alighieri (A Divina Comédia, Inferno – canto primeiro)

Dirigido por Claude Chabrol, cineasta francês, o longa-metragem de 1977, Alice, também intitulado A Última Fuga (la dernière  fugue), narra a história da personagem homônima – interpretada pela bela atriz neerlandesa Sylvia Kristel – que, insatisfeita com o matrimônio, abandona a casa do marido, e precisa passar o serão noturno em um casarão antigo, habitado por um misterioso mordomo  que a recepciona e por um anfitrião velho (chamado Henri Vergennes) que a acolhe, após seu carro ter sido danificado em uma estrada inóspita pelas tempestades que coriscavam a noite e rasgavam os céus.  Levada aos seus aposentos para repousar, Alice repara que o pêndulo do relógio no quarto está parado, estático, em união com a própria realidade do ambiente, ao que o anfitrião lha responde que este está quebrado; o tempo, enfim, não é importante.

Na manhã consecutiva a uma noite de ocorrências insólitas (o relógio, enquanto Alice dormia, volta a pendular, ela desperta com bizarros sons de algo parecido com transmissões distorcidas, uma coisa meio alienígena, até) ela decide continuar viagem; vê que seu carro foi concertado na véspera, procura Vergennes e o mordomo, embora não os encontre, deposita sua bagagem no banco do automóvel, gira a chave, liga o motor, dirige para a saída da propriedade a fim de voltar à rodovia, e é aí que ela dá-se do princípio da situação em que está encerrada: o casarão fica no centro da propriedade, que é constituída por bosques cerrados de longas árvores; todavia, eles não têm fim, ou melhor, são destituídos do princípio lógico e natural da extensão espacial que, quando percorrida, leva à continuidade dessa mesma extensão, desde que o caminhante não seja obstruído por obstáculos geográficos – mas não são as leis físicas que a impedem de sair, e sim a falta de um princípio tal, pois ela sempre retorna ao ponto de origem, o casarão onipresente. Esta é uma obra invulgar vista as anteriores e posteriores do diretor Chabrol, que morreu no dia 12 de setembro de 2010, cujo gênero é o drama fantástico.

Curiosa característica essa do filme, a do tempo. Ele tem dois sentidos que se complementam e atuam conjuntamente. O primeiro tempo é o da interinidade, presente, por exemplo, nas horas em que funciona o pêndulo do relógio, e uma série de eventos fantásticos começam a acontecer a partir daí. O segundo tempo é o da lógica intemporal, metaforizada no universo paralelo no qual Alice está, representando, na verdade, a sua morte, mostrada na última cena, que faz compreender o porquê dos personagens que aparecem a Alice não dialogarem por intermédio de perguntas, e nem responderem a quaisquer umas feitas por ela, o que é incrível, pois à medida das perguntas feitas e não respondidas, a curiosidade e as suposições de quem assiste só aumentam; enfim, o porquê de todos esses mistérios é que a morte não esclarece as questões, não há perguntas por que não há respostas, simplesmente.

Pode até ser que Chabrol tenha se inspirado na ideia base da Divina Comédia do poeta florentino Dante Alighieri para o roteiro. Como se sabe, Dante desceu ao inferno e seus círculos, contudo não estava morto, mas vivo, diferente de Alice. No inferno ele observa os castigos imputados nas almas flageladas, que contrariaram os preceitos cristãos e da igreja católica, e sofrem o peso da moralidade sob o suplício da dor eterna. Em semelhança ao poema, o bosque seria a “selva escura” por qual Dante caminha perdido, o casarão o limbo e a pequena porta que desde o início mantem-se trancada e aguça a curiosidade de Alice é, segundo as estranhas explicações de Vergennes, a passagem pela qual os espíritos obscuros saem para seu mundo; porém, da mesma forma que tais espíritos maus podem sair, ela pode entrar. Essa porta seria, em relação ao poema e à própria ideia factual do filme, o portal para o inferno; no filme, no entanto, a única forma de Alice retornar ao seu mundo verdadeiro, escapando do limiar atemporal, é descer a escadaria da porta e chegar ao inferno, onde ela passará uma espécie de “transformação física, moral” (nas palavras de Vergennes), e depois de algum tempo, não muito tempo, claro, assim espera ele, poderá ela retornar à sua realidade e civilização. Pode ser visto no filme, então, o inferno como renovação e a busca pela essência, e isso, de fato, é o verdadeiro inferno do homem.

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Uma resposta para Alice

  1. Juvenal dias disse:

    Parabens Gui, belo texto como sempre.

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